Tiroteio na Tijuca deixa um morto e feridos – Uanderson Fernandes / Agência O Globo
Outros moradores escaparam por pouco dos disparos durante perseguição policial a criminosos com fuzis
Por Carina Bacelar, Gustavo Goulart e Lívia Neder, com colaboração de Elenilce Bottari, Gabriela Viana e Julia Cople para Jornal O Globo
Uma noite que deveria terminar em samba, com o desfile de um bloco de bairro que se encaminhava para o final, se tornou um pesadelo para os moradores da Tijuca. Enquanto os bares da região da Rua Conde de Bonfim estavam cheios e o cortejo do bloco Nem Muda Nem Sai de Cima arrastava os foliões que ainda tinham disposição, a prosa nas mesas de bar e o som das marchinhas foram abafados pelo ruído de armas de guerra. Um grupo de criminosos armados com fuzis, distribuídos em seis carros, levou pânico ao se envolver em uma perseguição com policiais do 6º BPM (Tijuca). Um dos incontáveis tiros de fuzil disparados atingiu o garçom Samuel Ferreira Coelho, de 24 anos, que trabalhava no Bar e Café Pinto, e morreu na hora. Outros disparos feriram dois policiais, um sargento e um soldado do 6º BPM, uma passageira de um Uber e, de raspão, um cliente do bar do Pinto. A polícia investiga se o bando se deslocava da comunidade da Rocinha para o Morro da Formiga, na Tijuca.
Medo crescente. Troca de tiros no Bar Pinto, na Tijuca, é mais um episódio de violência que assusta moradores do bairro – Uanderson Fernandes / Agência O Globo
A narrativa da tragédia
As duas favelas são controladas pelo mesmo grupo criminoso desde que o traficante Rogério 157 rompeu com a quadrilha que mandava na Rocinha. De acordo com o comandante do 6º BPM, tenente-coronel Luis Claudio dos Santos, os criminosos demonstravam não conhecer direito as ruas por onde andaram. A perseguição começou quando um carro da Polícia suspeitou de um veículo, um Honda Civic, e pediu que ele parasse. Como o carro continuou seu trajeto, os PMs foram atrás dele.
Na altura de uma padaria, na Rua Conde de Bonfim, começaram os tiros, vindos de carros que estavam atrás do veículo policial. Foi aí que os PMs tiveram a dimensão do tamanho do grupo: vinham mais cinco carros, com bandidos armados de fuzis, atrás deles. O carro dos PMs foi alvejado por 15 disparos. Outra patrulha da PM, que tentava fazer um cerco ao bando, também foi atingida. Ao todo, dois policiais, um de cada veículo, ficaram feridos, e foram levados para o Hospital da Polícia Militar. O sargento Esudecir de Souza, de 48 anos, foi atingido no ombro e na perna. Ele teve uma lesão vascular grave, mas ontem já estava fora de perigo. Também tinha quadro clínico estável o soldado Rafael Estelin Coelho, de 23 anos, ferido na panturrilha.
Já Samuel trabalhava quando foi alvejado. Ele cobria férias no Bar do Pinto, mas era conhecido e querido pelos clientes do vizinho Bar do Momo, onde serviu mesas por quatro anos. Nas redes, os amigos que fez trabalhando nos dois estabelecimentos não acreditavam no que ocorreu. A região amanheceu de luto: neste domingo, nenhum dos dois bares onde Samuel trabalhou abriram as portas. Moradores ouviram de peritos que estiveram no local que foram disparados cerca de 300 tiros anteontem.
Uma das balas feriu Esther Maria Nicacio, de 54 anos, atingida no braço quando era transportada por um Uber na Rua Conde de Bonfim. Já Sérgio Roberto de Castro Seixas, de 53 anos, era cliente do Bar Pinto e foi ferido de raspão na barriga, sendo levado para o Hospital Souza Aguiar. Muita gente escapou por pouco: foi o caso de duas jovens que tiveram o carro atingido por 17 tiros, quando voltavam de um bloco para casa. Nenhum acertou nelas.
A tragédia que chocou a Tijuca poderia ter sido ainda maior. Cerca de mil foliões do Nem Muda Nem Sai de Cima passaram em frente ao local da perseguição, e estavam 220 metros adiante, na Conde de Bonfim, quando começou o tiroteio. Um vídeo mostra o desespero dos organizadores no carro de som: enquanto as pessoas corriam, eles avisavam que os disparos vinham de fora do cortejo.
— As pessoas entraram em pânico e correram para todos os lados. Muitos choravam. Foi muito dramático— contou o diretor do bloco, Pedro Henrique.
Carros foram roubados na Grande Tijuca
De acordo com o comandante do 6ºBPM (Tijuca), tenente-coronel Luiz Claudio dos Santos, três dos seis carros usados por criminosos durante a perseguição de ontem à noite foram roubados na última semana, na própria região da Grande Tijuca. Segundo dos Santos, os crimes vinham chamando a atenção do batalhão nesse período. Ao todo, os bandidos ocuparam um Honda Civic, um Fiat Linea, um Huyndai Creta, um Honda Fit e um Mercedes C200. Segundo o comandante do batalhão, o comboio de criminosos não estava fugindo de nenhum assalto ou roubo cometido naquele mesmo dia, o que pode indicar que planejavam alguma ação:
— Não sei dizer se iam praticar alguma ação criminosas. Era um comboio muito grande, provavelmente iam fazer algo — disse o coronel. — Me pareceu que não dominavam o terreno, que não conheciam bem a área.
O caso está sob responsabilidade da Delegacia de Homicídios da Capital (DH). Investigadores apuram se o bando vinha da Rocinha e se dirigia ao Morro da Formiga, comandado pela mesma facção da comunidade de São Conrado. Na última semana, a Rocinha viveu dias de intensos tiroteios durante operações de batalhões especiais da PM. Desde setembro, a comunidade também sofre com uma guerra de facções, entre o grupo de Rogério 157, o mesmo da Formiga, e o rival, liderado pelo traficante Nem. Ele e 157 estão presos em Porto Velho e comandam suas quadrilhas à distância.
A Polícia Militar identificou que anteontem, logo depois da perseguição, quatro dos carros usados por criminosos foram abandonados na Rua Dezoito de Outubro, na Tijuca, acesso ao Morro da Formiga. A comunidade foi alvo de uma operação da PM ontem pela manhã, e mais dois carros envolvidos no tiroteio foram encontrados no alto do morro, já perto da zona de mata. A polícia acredita que eles tenham fugido por um local conhecido como escadaria.
O Morro da Formiga, para onde foram os criminosos em fuga, tem uma Unidade de Polícia Pacificadora desde 2010. Quando a UPP local foi instalada, a comunidade tinha 199.255m², e fazia limite com Alto da Boa Vista, Usina, Grajaú, Andaraí, Vila Isabel, Maracanã e Santa Teresa.
Ao longo do ano passado, a Grande Tijuca, área do 6º BPM, teve uma média de 2,7 roubos de veículos por dia. Foram 998, no total, em 2017. Esse número disparou nos últimos anos: em2016, foram registrados 527 roubos na mesma região, e em 2015, 278. Os homicídios dolosos também estão em alta: eram apenas 14 em 2015, pularam para 31 em 2016 e para 39 no ano passado.
Os tiroteios também têm incomodados os moradores da região — principalmente os que vivem nas favelas. De acordo com o aplicativo Fogo Cruzado, a Tijuca foi o sexto bairro com mais tiroteios no Rio em 2017, com 125 notificações. Perdeu apenas para Cidade de Deus, Complexo do Alemão, Maré, Copacabana e Vila Kennedy. Durante essas ocorrências mapeadas na Tijuca, 30 pessoas ficaram feridas, o maior número da capital, empatado com Campo Grande.
O episódio de ontem deixou indignados os moradores do bairro, que decidiram se mobilizar contra a violência. Ainda abalados pela morte do garçom Samuel, eles marcaram pelas redes sociais uma manifestação para o próximo dia 4 de fevereiro a partir das 14h, com concentração na Praça Xavier de Brito. Pretendem fazer uma caminhada, com apitaço, às 15h até o Bar Pinto, onde a vítima trabalhava. Os organizadores pedem aos moradores para vestir branco e levar apitos.
O garçom Samuel Ferreira Coelho, de 24 anos, era conhecido por cliente por temperamento gentil e educado – Acervo Pessoal
Samuel, a vítima baleada
Samuel Ferreira Coelho, chamado também de Samuca, não era só um garçom conhecido pelos seus clientes, mas também muito querido por eles. Doce r gentil foram alguns dos adjetivos usados por eles ontem nas redes sociais, ao lamentarem, em choque, que o jovem de 24 nos cinéfilo e morador da Tijuca havia morrido alvejado por um tiro de fuzil no peito, enquanto trabalhava no Bar Pinto. Estava ali cobrindo férias, e já havia passado quatro anos atendendo as mesas do Bar do Momo, famoso na região pelos hambúrgueres e petiscos. Em seu Facebook, Samuel, que também adorava basquete e rap, havia publicado, em 2016, um ranking internacional mostrando que, no Brasil, só 36% da população se sentia segura nas ruas. Esse medo atormentava também a mãe dele, Raimunda da Conceição. Ao ver o filho morto, disse, desolada, que se preocupava com a profissão noturna de Samuca:
— Pedi para ele não aceitar essa vaga porque estava com medo dele trabalhar à noite. Tenho mais um filho, mas em casa éramos só nós dois. Nunca imaginaria que meu filho seria mais uma vítima da violência retratada nas páginas dos jornais — lamentou Raimunda.
A administradora Monique Lorosa (a direita) e a turismóloga Jade Burmeister tiveram carro atingido por 17 tiros – Acervo Pessoal
A dupla salva pela sorte
Foram 17 tiros no carro e apenas alguns arranhões pelo corpo. A administradora Monique Lorosa e a turismóloga Jade Burmeister voltavam de um bloco na Gávea, Zona Sul do Rio, quando se viram no meio da linha dos disparos. Na tensão do tiroteio, a administradora lembra de ver “flashes” de armas e muitas pessoas no chão, feridas ou escondidas dos tiros. Diante de tantas balas, Monique só consegue encontrar uma justificativa para as duas saírem ilesas: estavam fantasiadas de super-heroínas. Ela estava de Super Girl, e a amiga, de Mulher Maravilha.
— Foi o universo que conspirou para a gente estar viva. — destacou a tijucana de 35 anos, que ficou com arranhões pelo corpo, causados pelos estilhaços.
Monique recorda que a amiga chegou a pensar ter sido baleada, em meio aos disparos:
— Foram muitos, nunca vi coisa igual. Só no nosso carro, foram 17 tiros, alguns de fuzil. Não sei como a gente está viva. Ela (Jade) me disse: ‘amiga, acho que fui baleada’. Então eu abri a porta do carro e saí puxando ela. Eram os estilhaços em cima da gente. —recordou Monique, com a voz embargada.
Geovane da Silva Garcia, 69 anos, mostra bala que atingiu seu apartamento na Rua Otávio Kelly, na Tijuca – Marcio Alves / Agência O Globo
Casal de aposentados teve janela atingida
Quando os tiros começaram, o empresário aposentado Giovani da Silva Garcia, de 69 anos, que mora com a mulher num apartamento do terceiro andar, em um prédio na Rua Conde de Bonfim em cima do Bar Pinto, estava na janela de um dos cômodos gravando um vídeo do desfile do bloco com um celular. Quando se deu conta, a parede do seu apartamento foi atingida por um tiro. Ele se escondeu no quarto do casal, mas lá outro disparo perfurou o vidro da janela. A bala ficou no quarto, e ele decidiu guardá-la para mostrar a quem quiser ver o risco de se morar na Tijuca. Garcia morou em Angra dos Reis durante 30 anos e voltou a morar no bairro há cerca de um ano justamente para fugir da violência crescente da Costa Verde:
— Eu e minha mulher ficamos muito assustados. Foram muitos tiros. E olha que morei na Tijuca e me mudei para Angra dos Reis há 30 anos. Saí de lá justamente por causa da violência crescente. Muito triste o que aconteceu, especialmente com o garçom do Bar Pinto — contou o aposentado, que por pouco conseguiu escapar dos disparos.
Medo congelado no tempo. Relógio parou ao ser ‘baleado’ – Márcio Alves / Agência O Globo
Os outros atingidos pelos disparos
Em uma noite amena, com ruas lotadas, gente que passava pela rua Conde de Bonfim ou relaxava no sábado acabou atingida. Sérgio Roberto de Castro Seixas foi um deles. O homem, de 52 anos, jantava no Bar Pinto, o mesmo onde trabalhava o garçom morto com um tiro no peito. No meio da confusão, Seixas foi ferido de raspão na barriga e, socorrido para o Hospital Souza Aguiar, acabou liberado às 3h, com um curativo feito.
— Fiquei calma porque ele falou comigo por telefone, ele estava bem porque não havia sido atingido com gravidade. É um retrato desta violência que estamos vivendo. Vamos levando, tentando seguir aguentando tudo isso — desabafou a mãe dele, que não quis ser identificada.
Além de Seixas, as três pessoas atingidas (dois policiais que participaram da perseguição e Esther Nicacio, que estava em um Uber) foram socorridos às pressas por uma ambulância que passava pela rua, segundo o comandante do 6º BPM, que revelou que os três não não correm risco de vida. As balas acertaram também tudo o que estava no caminho, incluindo o relógio de uma sorveteria que acabou parando na hora exata do tiroteio que abalou a Tijuca.