Unidade de referência, em crise, é imprescindível para 793 pessoas

Fonte por Carina Bacelar para Jornal O Globo

Até o fim de 2015, Gabriely Hipolito, hoje com 16 anos, adorava passar os dias sob o sol na piscina da casa onde morava com a família, em Magé, se divertia na rua com amigos e tomava Coca-Cola até para acompanhar o café da manhã. Pouco antes do Natal daquele ano, apareceram as primeiras manchas nos pés que logo tomaram suas pernas, e o inchaço nelas passou a ser visível. O sorriso largo da menina virou choro, e as lágrimas escorriam dos olhos, que ganharam até um tom esverdeado. Depois de um mês no Hospital de Saracuruna, em Duque de Caxias, ela deixou a internação com a certeza de que não tinha um simples problema de pele.

Mas Gabriely, que foi levada até em médicos particulares, só teve diagnóstico este ano. Há três meses, mais de uma vez por semana, a mãe dela, Patrícia Hipólito, de 44 anos, sai do Recreio de carro com a adolescente ainda adormecida, às 6h30m, com destino a Vila Isabel. Lá, ela é atendida pela equipe do Hospital Pedro Ernesto, que identificou uma doença crônica no fígado da jovem, com efeitos semelhantes aos da hepatite. Ela ainda não sabe que remédio tomar (a equipe médica está perto de apontar a origem da doença), mas, enquanto isso, o vício do refrigerante deu lugar a uma dieta à base de frutas e sucos, e o biquíni foi substituído pela calça comprida, que a protege do sol.

Para sensibilizar a Justiça estadual e conseguir arrestar bens que garantissem um valor mínimo para manter a unidade em funcionamento, a direção do Pedro Ernesto, hospital de altíssima complexidade dentro da rede estadual, fez um cálculo impactante: se fosse obrigado a fechar pela crise que se abate mais forte desde 2015, 793 pacientes correriam risco de morrer. São pessoas totalmente dependentes do tratamento oferecido no local, portadores de doenças graves e raras, como Gabriely.

Essa jornada, para Danilo Conceição, de 22 anos, acabou com uma palavra complicada: dermatomiosite. Aos 11 anos, ele ouviu dos médicos do Pedro Ernesto que essa era a causa da fraqueza extrema do corpo, da incapacidade de andar e até de comer. Se não for tratada, a doença autoimune que atinge os músculos pode paralisar o corpo inteiro, inclusive o aparelho respiratório, e matar. Desde então, Danilo passou a ser acompanhado no hospital. Na última quinta-feira, foi à reumatologia tomar um medicamento na veia, pois seu quadro havia se agravado e ele tinha dificuldade para andar.

A mãe de Danilo, Emiliana Conceição, de 53 anos, passou a acompanhá-lo em todas as consultas. Largou o trabalho como cuidadora desde que o filho recebeu o diagnóstico e passou a fazer bolos e salgadinhos em casa, em Anchieta. Seus kibes e rissoles são um sucesso na reumatologia do hospital. Desde que começou o tratamento, o jovem já passou por três internações e teve uma necrose no fêmur. Como a doença ataca quando o portador pega sol, médicos de outras unidades chegaram a desacreditar da possibilidade de um tratamento eficiente. Um deles questionou Emiliana sobre como seria possível “um carioca não pegar sol”.

— Prefiro nem pensar em como seria se o Pedro Ernesto não existisse. Onde conseguiríamos tratamento? Podem me ligar, eu venho às manifestações — disse Emiliana aos médicos, garantindo que “vai brigar muito” pelo hospital.

Danilo, hoje fotógrafo e estudante de marketing, trocou os passeios de bicicletas com os vizinhos pelo videogame em casa, e os dias inteiros na praia pelo banho de mar à noite no verão. Enquanto esperava que o medicamento fosse administrado em sua veia, lia “O que é impossível para você”. O autor, Marcos Rossi, nasceu com uma síndrome rara e sem braços e pernas. O que não o impediu de surfar e participar da bateria de uma escola de samba:

— Quero ter forças para conseguir estudar bastante e passar em um concurso público — diz Danilo, que logo provoca risos dos médicos da reumatologia, que, como todos do hospital, estão há dois meses sem receber o salário completo.

Mudança de hábito

O diretor do Pedro Ernesto, Edmar Santos, calcula que este ano o hospital deixará de fazer sete mil das dez mil cirurgias que tem capacidade de realizar. Estima ainda que quatro mil delas sejam de câncer — pessoas cujo custo da espera costuma ser a própria vida. Depois do Inca, que é federal, lá é a unidade que mais atende pacientes oncológicos no Rio.

Desde agosto do ano passado, o hospital se mantém funcionando graças à Defensoria Pública, que conseguiu, na Justiça, uma decisão para arrestar bens do estado e repassar à unidade (cerca de R$ 7,5 milhões mensais). Mesmo assim, para sobreviver com essa quantia, o Pedro Ernesto só usa 160 dos 350 leitos disponíveis. O quadro de desalento fez com que 77 médicos — concursados — pedissem exoneração desde o início de 2016.

— Em toda a rede estadual, quem precisa de procedimentos de maior complexidade é encaminhado ao Pedro Ernesto. Se fecharmos, levaremos toda a rede ao colapso — garante Edmar.

Diagnosticada com lúpus em 2009, Kessia Camila dos Santos, de 25 anos, é categórica: diz que se o hospital fechar, morre. Na última quarta-feira, chegou ao Pedro Ernesto com febre de mais de 40 graus. Desempregada e desde janeiro sem conseguir pegar nos polos de distribuição da rede estadual um remédio que precisa tomar para controlar a doença, foi internada às pressas.

Kessia descobriu a doença, que faz o corpo atacar seus próprios tecidos, em 2009, quando estava grávida. Com manchas na pele e sangramentos, os médicos que consultava diziam que aqueles eram sintomas normais na gestação. Sem tratamento, acabou perdendo a criança. Na Maternidade Leila Diniz, na Barra da Tijuca, uma médica desconfiou das manchas e a encaminhou ao Pedro Ernesto.

Sob os cuidados da equipe de reumatologia, ela vai ao hospital no mínimo a cada seis meses. Em 2010, ainda resistindo ao tratamento, teve uma pneumonia e foi parar no CTI do hospital. Foi quando começou a ter medo da doença. Mais consciente, passou a seguir as indicações médicas, o que inclui não ir à praia e evitar o sol.

— Quando fui internada, o doutor Evandro (Klumb, chefe da reumatologia), disse: se você não tomar jeito, vai morrer. Mas, quando fiquei debilitada, ele sempre me ajudou — disse, ainda com a voz fraca.

Pouco antes de dar entrevista, Kessia recebeu uma visita do médico, que brincou com as manchinhas que afloraram no seu rosto e perguntou se estava tudo bem. Este mês, o Pedro Ernesto faz 55 anos. Se há poucos motivos para comemorar, um deles, segundo os médicos, é a chance de garantir a Kessias, Danilos e Gabrielys uma rotina quase normal.

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